Anna Kariênina, natureza e a Lei Natural

Eles saberão, enfim, que todos os bens da natureza, todos os tesouros da graça, pertencem em comum e indistintamente a todo o género humano e que só os indignos é que são deserdados dos bens celestes“- Papa Leão XIII, “Rerum Novarum”, 15 de maio de 1891.

No início da primavera comecei a reler Anna Kariênina, a primeira vez que li foi no começo desse ano, mas resolvi ler mais uma vez em um intervalo de tempo tão curto porque minha amiga me convidou para fazer uma leitura conjunta.

Desta vez eu me atentei bastante às questões filosóficas que o Tolstói personificou no romance, foquei mais no naturalismo e no pensamento transcedental por causa do meu personagem favorito, o Liévin. E também por já ter tido contato com o Thoreau há uns anos e acabei sabendo que ele foi uma forte influência para o escritor. Então me sinto um pouquinho segura para escrever sobre o que se passou na minha mente durante a leitura. E o Thoreau foi influenciado por Ralph Waldo Emerson, autor do tratado filosófico chamado de “Natureza”.

Em Walden, o Henry David Thoreau, descreve a sua vida no bosque, desde as descrições econômicas e da natureza até as suas reflexões mais íntimas e espirituais. Portanto, além de ser um relato autobiográfico, é também um tratado filosófico. Enquanto em Natureza, o Emerson expressa inúmeras reflexões espirituais sobre a natureza, os bens materiais, beleza, linguagem, disciplina, idealismo, etc.  Considero importante dar uma pequena introdução sobre estes escritores pelo fato de serem influências do Tolstói, direta ou indiretamente, pois no romance há a dualidade da vida aristocrática na cidade e a vida simples no campo.

Thoreau ensina a verdadeira revolução, a única que vale a pena e que não derrama sangue: essa que permite mudar a ordem do mundo, mudando-se e convidando os outros a mudar“, texto, publicado por La Nación, 04-08-2019.

É sabido que Liévin é o alter-ego do Tolstói. Este personagem se sente muito desajustado na vida urbana da aristocracia. Ele prefere cuidar da sua propriedade rural, caçar, lidar com o nascimento de um bezerro, escrever um livro sobre agricultura, não se incomoda com sua própria companhia e medita sobre a questão dos mujiques (os camponeses da Rússia) e essas séries de acontecimentos que só existem em um lugar cercado por natureza.

Trecho de Walden, ou a Vida nos Bosques. Ele lembra-me muito o Liévin.

No decorrer do romance, vamos percebendo que a vida no campo é demonstrada como um ideal, enquanto a vida burguesa russa é apresentada com muitas futilidades. Em Walden, Thoreau propõe o que ele chama de uma “medicina eupéptica”, uma medicina para produzir o bem, e para distanciar a maldade. E essa mudança está intimamente relacionada com o convívio do homem com a natureza. Provavelmente é desta reflexão que o Tolstói se influencia e a põem no seu personagem, o qual representa tal ideal.

Deus disse: “Eis que eu vos dou toda a erva que dá semente sobre a terra, e todas as árvores frutíferas que contêm em si mesmas a sua semente, para que vos sirvam de alimento“. – Gênesis, Capítulo 1, versículo 29.

Tolstói escreve em seu diário que se sente sufocado no mundo social, e por isso, prefere ficar sozinho no campo. É esse afastamento que o faz observar o outro lado da vida, onde há a ganância por poder, riquezas, traições e falsas aparências. E Thoreau reflete sobre os vícios da sociedade de sua época: a cobiça, comprar, possuir, consumir, substituir. Para ele, e também para o Tolstói, é também uma vida falsa com os outros: uma vida reduzida à superfície, às aparências, à mundanidade, aos salões, festas.

No romance, podemos perceber estas questões filosóficas nos personagens principais e secundários: na vida aristocrática russa existe muita falsidade e divertimentos medíocres, onde as pessoas se reunem para conversar sobre a vida dos outros e discutir sobre assuntos profundos de maneira rasa ou com viés moderno.

A maioria dos personagens da burguesia urbana estão muito longe de representarem um exemplo a ser seguido. Enquanto do outro lado temos o Liévin e a Kitty, ambos aristocráticos, mas que vivem no campo (Kitty passa a viver no campo após o casamento). Eles não são a personificação da perfeição sublime como o Alexei Karamázov, do romance Os Irmãos Karamázov, do escritor Dostoiévski (não consigo evitar comparações), mas é possível notar o desejo de se tornarem melhores e como eles vão amadurecendo ao longo da narrativa. Algumas virtudes notadas nesta atmosfera: o trabalho, o casamento fiel, e a busca por Deus.

Todas as coisas são morais, e em suas ilimitadas mudanças fazem incessante referência à natureza espiritual. Assim foi glorificada a natureza em suas formas, cores e movimentos, para que todos os planetas dos céus mais remotos, todas as transformações químicas desde o cristal mais rude até as leis mesmas da vida, todos as transformações vegetais desde o início do crescimento de uma folha até as selvas tropicais e as antediluvianas minas de carvão, todas as funções animais – desde a esponja até Hércules – sussurrem ao homem ou lhe gritem com voz de trovão as leis do bem e do mal, e façam eco dos Dez Mandamentos.” – Natureza, Ralph Waldo Emerson.

Anna e o seu amante Vrónski não representam o ideal de amor proposto por Tolstói, que é o da simplicidade natural, estes não podem escapar do destino que ocorre para aqueles que se desviam das leis naturais e divinas. Portanto, não é a suposta rejeição de Vrónski que leva Anna à ruína; mas, sim, as suas escolhas egoístas e a culpa que a domina em seu íntimo, até tomá-la por inteira. Culpa que a arrasta em uma correnteza invencível até a loucura. Mas parece que o Karienin também não corresponde a este ideal porque este casamento ocorreu por conveniência, interesses…

“O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar que lhe seja adequada.” – Gênesis, Capítulo 2, versículo 18.

Kitty e Liévin representam o ideal proposto pelo escritor. No começo do livro, a Kitty era apaixonada e iludida pelo Vrónski e muito contagiada pelos ares sensuais da civilização urbana. Vrónski não tinha pretensão nenhuma de casar-se com ela e após esta tremenda desilusão, ela acaba ficando doente e conhece uma moça muito devota, a qual a faz despertar para uma nova vida. Esta mudança será mais notória após o casamento, pois ela se revela uma mulher determinada, forte, fiel, submissa e uma boa companheira.

Minha reflexão geral:

Para Tolstói, a vida no campo é um ideal de beleza e moral, pois se está longe da vida mundana dos ricos da cidade grande. A hipocrisia lhe causa mal estar, portanto ele se torna um crítico ferrenho da sociedade de sua época. O autor consegue expressar que as escolhas que cada personagem faz é o que determina o seu destino. Se alguém busca pela Verdade, com certeza encontrará a redenção. Mas ao escolher seguir as próprias vontades, o destino é outro, sempre vazio de sentido e trágico, de algum modo. O escritor nos mostra que um amor baseado na razão é muito mais suscetível a crescer, apesar daquelas dificuldades que são inevitáveis. Enquanto o amor que se assemelha mais a um furacão, destrói tudo ao redor, inclusive a si mesmo.

 

Obrigada pela visita! ♡

 

2 pensamentos em “Anna Kariênina, natureza e a Lei Natural

  1. Excelente texto, Verônica!! <33
    Adorei conhecer mais sobre as influências do Tolstói, ajudará em minha leitura. Obrigada por compartilhar. *-*

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